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Wednesday, February 04, 2009
Aquele olhar
Para G. A.
“Uma noite longa, pra uma vida curta”
(Herbert Viana- Lanterna dos Afogados)
A chuva caía insistentemente. Abrigados sob o toldo da farmácia, eles sequer se mexiam. Aguardavam talvez que o destino lhes reservasse qualquer espécie de surpresa.
O primeiro olhava insistentemente para o relógio prateado. Contava minutos e segundos como se houvesse hora certa para o temporal cessar. Esforçava-se para ser natural. Tentou ainda cantarolar baixinho uma velha canção, mas não obteve sucesso.
O outro estava ansioso. Sabia o que significava estar ali, naquelas circunstâncias. Mas não poderia esboçar qualquer reação. Um ato precipitado poderia por tudo a perder.
O que portava o relógio era alto, moreno, cabelos negros lisos, roupa formal. O outro usava jeans e camiseta vermelha. Também era alto, usava aparelho nos dentes e possuía o cabelo levemente crespo e a tez bem branca.
O dia raiava lentamente. As nuvens carregadas atrasavam a alvorada. Mesmo assim, os primeiros raios começavam a surgir.
Trocaram o primeiro olhar. E o segundo, e o terceiro. Em alguns instantes, miravam-se fixamente. Então o moreno desistiu e mudou de direção. E o seu interlocutor decepcionou-se.
Ambos imaginavam situações semelhantes. Era a chuva que não passava, a preocupação dos pais com tamanha demora, o frio que já lhes corroía os ossos e principalmente, aquele olhar que não era passível de ser encarado.
Ambos desejavam uma palavra, gesto ou qualquer outro contato inicial. Mas em sua vidas, sempre fora difícil iniciar. E então, conformados, só lhes restava observar o cair da chuva.
Foi então que o inesperado veio a socorrer-lhes. Um raio atravessara a árvore ao fim da rua. Um grande clarão iluminou o horizonte próximo, sendo sucedido por uma profusão de trovões. O fim de tudo parecia se aproximar.
Assustados, comentaram timidamente algumas bobagens. Entre a apreensão e o sobressalto, sentiam-se um tanto quanto maravilhados. E finalmente, começaram a dialogar.
Conheciam-se de vista, mas preferiram não fazer menção a este fato. Apresentaram-se como se fosse este o primeiro contato, embora há muito já se interessassem um pelo outro. E a conversa se desenrolou naturalmente.
Eram vizinhos de prédio. Também freqüentavam a mesma universidade. O que usava aparelho cursava farmácia; o outro história.
Cada palavra era um passo firme em direção a uma intimidade que se aproximava cada vez mais rápido. Logo não conseguiam mais disfarçar a atração que sentiam um pelo outro. E os olhares voltavam a se fixar, numa intensidade nunca antes vista.
Então, talvez por mero acaso, as mãos se tocaram. Em seguida os lábios se encontraram e os braços se entrelaçaram. Logo estavam se amando na calçada, sob o toldo da drogaria.
A chuva cessou algumas horas depois. A prefeitura mandou homens de macacão azul para remover o que restara da arvore atingida. E exceto por uma velha senhora que caminhava todas as manhãs pela região, ninguém mais estranhou aqueles dois corpos nus que amanheceram abraçados sobre a calçada da Rua da Graça.
J.M, Salvador, 18 de abril de 2003
“Uma noite longa, pra uma vida curta”
(Herbert Viana- Lanterna dos Afogados)
A chuva caía insistentemente. Abrigados sob o toldo da farmácia, eles sequer se mexiam. Aguardavam talvez que o destino lhes reservasse qualquer espécie de surpresa.
O primeiro olhava insistentemente para o relógio prateado. Contava minutos e segundos como se houvesse hora certa para o temporal cessar. Esforçava-se para ser natural. Tentou ainda cantarolar baixinho uma velha canção, mas não obteve sucesso.
O outro estava ansioso. Sabia o que significava estar ali, naquelas circunstâncias. Mas não poderia esboçar qualquer reação. Um ato precipitado poderia por tudo a perder.
O que portava o relógio era alto, moreno, cabelos negros lisos, roupa formal. O outro usava jeans e camiseta vermelha. Também era alto, usava aparelho nos dentes e possuía o cabelo levemente crespo e a tez bem branca.
O dia raiava lentamente. As nuvens carregadas atrasavam a alvorada. Mesmo assim, os primeiros raios começavam a surgir.
Trocaram o primeiro olhar. E o segundo, e o terceiro. Em alguns instantes, miravam-se fixamente. Então o moreno desistiu e mudou de direção. E o seu interlocutor decepcionou-se.
Ambos imaginavam situações semelhantes. Era a chuva que não passava, a preocupação dos pais com tamanha demora, o frio que já lhes corroía os ossos e principalmente, aquele olhar que não era passível de ser encarado.
Ambos desejavam uma palavra, gesto ou qualquer outro contato inicial. Mas em sua vidas, sempre fora difícil iniciar. E então, conformados, só lhes restava observar o cair da chuva.
Foi então que o inesperado veio a socorrer-lhes. Um raio atravessara a árvore ao fim da rua. Um grande clarão iluminou o horizonte próximo, sendo sucedido por uma profusão de trovões. O fim de tudo parecia se aproximar.
Assustados, comentaram timidamente algumas bobagens. Entre a apreensão e o sobressalto, sentiam-se um tanto quanto maravilhados. E finalmente, começaram a dialogar.
Conheciam-se de vista, mas preferiram não fazer menção a este fato. Apresentaram-se como se fosse este o primeiro contato, embora há muito já se interessassem um pelo outro. E a conversa se desenrolou naturalmente.
Eram vizinhos de prédio. Também freqüentavam a mesma universidade. O que usava aparelho cursava farmácia; o outro história.
Cada palavra era um passo firme em direção a uma intimidade que se aproximava cada vez mais rápido. Logo não conseguiam mais disfarçar a atração que sentiam um pelo outro. E os olhares voltavam a se fixar, numa intensidade nunca antes vista.
Então, talvez por mero acaso, as mãos se tocaram. Em seguida os lábios se encontraram e os braços se entrelaçaram. Logo estavam se amando na calçada, sob o toldo da drogaria.
A chuva cessou algumas horas depois. A prefeitura mandou homens de macacão azul para remover o que restara da arvore atingida. E exceto por uma velha senhora que caminhava todas as manhãs pela região, ninguém mais estranhou aqueles dois corpos nus que amanheceram abraçados sobre a calçada da Rua da Graça.
J.M, Salvador, 18 de abril de 2003
Dois Corpos que Caem
Por simples acaso, dois desconhecidos encontraram-se despencando juntos do alto do Edifício Itália, no centro de São Paulo.
- Oi - disse o primeiro, no alvoroçado início da queda.- Eu me chamo João. E você?
- Antônio- gritou o segundo, perfurando furiosamente o espaço.
E, só para matar o tempo do mergulho, começaram a conversar.
- O que você faz aqui? – perguntou Antônio.
- Estou me matando- respondeu João.- E você?
- Que coincidência! Eu também. Espero que desta vez dê certo, porque é minha décima tentativa. Há anos venho tentando. Mas tem sempre um amigo, um desconhecido e até bombeiro que impede. Você afinal está se matando por quê?
- Por amor- respondeu João, sentindo o vento frio no rosto.- Eu, que amava tanto, fui trocado por um homem de olhos azuis. Infelizmente só tenho estes corriqueiros olhos castanhos...
- E não lhe parece insensato destruir a vida por algo tão efêmero como o amor? – ponderou Antônio, sentindo a zoada que o acompanhava à morte.
- Justamente. Trata-se de uma vingança da insensatez contra a lógica- gritou João num tom quase triunfante. - Em geral é a vida que destrói o amor. Desta vez, decidi que o amor acertaria contas com a vida!
- Poxa – exclamou Antônio- você fez do amor uma panacéia!
- Antes fosse – replicou João, com um suspiro.- Duvidoso como é, o amor me provocou dores horríveis. Nunca se sabe se o que chamamos amor é desamparo, solidão doentia ou desejo incontrolável de dominação. O que na verdade me seduz é que o amor destrói certezas com a mesma incomparável transparência com que o caos significante enfrenta a insignificância da ordem. Não, o amor não é solução para a vida. Mas é culminância. Morrer por ele me trouxe paz.
Ante o vertiginoso discurso, ambos tentaram sorrir contra a gravidade.
- E você, como se sente? – perguntou João a Antônio.
- Oh, agora estou plenamente satisfeito.
- Então por que busca a morte?
- Bom- respondeu Antônio- me assustou descobrir um fiasco primordial: que a razão tem demônios que a própria razão desconhece. Daí, preferi mergulhar de vez no mistério.
- Sim, da razão conheço demasiado horrores. Mas que mistério é esse tão importante a ponto de merecer sua vida?
- Não sei- respondeu Antônio.- Mistério é mistério.
- Mas morto você não desvendará o mistério!- protestou João.
- Por isso mesmo. O fundamental no mistério é aguçar contradições, e não desvendar. Matar-me, por exemplo, é bom na medida que me torna parte do enigma e, de certo modo, o agudiza. Tem a ver com a fé, que gera energias para a vida. Ou para a história, quem sabe...
- Taí um negócio que perdi: a fé. Deus para mim...- e João engasgou.
- Ora – revidou Antônio vivamente.- A fé nada tem a ver com Deus, que se reduziu a uma pobre estrela anã de energias tão concentradas que já nem sai do lugar. Deus desistiu de entender os homens, e virou também indagador. Sem Deus nem Razão, a única fé possível é mergulhar neste abismo do mistério total.
- Mas para isso é preciso ao menos saber onde está o mistério- insistiu João com os cabelos drapejando ao vento.
- Ué, o mistério está em mim, por exemplo, que me mato para coincidir comigo mesmo. Mas há mistério também em você: seu morrer de amor é o mais impossível ato de fé. Graças a ele, você participa do mistério. Porque se apaixonou pelos abismos.
João olhou com olhos estatelados, ao compreender. E Antônio, que já faiscava na semi-realidade da vertigem, gritou com todas as forças:
- Há sobretudo este mistério maior de estarmos, na mesma hora e local, cometendo o mesmo gesto absurdo e despencando para a mesma incerteza, por puro acaso. Além de cúmplices, a intensidade deste mergulho nos tornou visionários. Você não vê diante de si o desconhecido? É que já estamos perfurando a treva.
E como tudo de fato reluzia, João também ergueu a voz:
- Sim, sim. É espantoso o brilho do absurdo.
- E agora- disse Antônio bem diante do rosto de João- falemos um pouco da permanência. Você gosta dos meus olhos azuis?
Foi quando os dois corpos se estatelaram na Avenida São Luís.
abril/1982
(João Silvério Trevisan, "Dois Corpos que caem", do livro de contos "Troços e Destroços")
- Oi - disse o primeiro, no alvoroçado início da queda.- Eu me chamo João. E você?
- Antônio- gritou o segundo, perfurando furiosamente o espaço.
E, só para matar o tempo do mergulho, começaram a conversar.
- O que você faz aqui? – perguntou Antônio.
- Estou me matando- respondeu João.- E você?
- Que coincidência! Eu também. Espero que desta vez dê certo, porque é minha décima tentativa. Há anos venho tentando. Mas tem sempre um amigo, um desconhecido e até bombeiro que impede. Você afinal está se matando por quê?
- Por amor- respondeu João, sentindo o vento frio no rosto.- Eu, que amava tanto, fui trocado por um homem de olhos azuis. Infelizmente só tenho estes corriqueiros olhos castanhos...
- E não lhe parece insensato destruir a vida por algo tão efêmero como o amor? – ponderou Antônio, sentindo a zoada que o acompanhava à morte.
- Justamente. Trata-se de uma vingança da insensatez contra a lógica- gritou João num tom quase triunfante. - Em geral é a vida que destrói o amor. Desta vez, decidi que o amor acertaria contas com a vida!
- Poxa – exclamou Antônio- você fez do amor uma panacéia!
- Antes fosse – replicou João, com um suspiro.- Duvidoso como é, o amor me provocou dores horríveis. Nunca se sabe se o que chamamos amor é desamparo, solidão doentia ou desejo incontrolável de dominação. O que na verdade me seduz é que o amor destrói certezas com a mesma incomparável transparência com que o caos significante enfrenta a insignificância da ordem. Não, o amor não é solução para a vida. Mas é culminância. Morrer por ele me trouxe paz.
Ante o vertiginoso discurso, ambos tentaram sorrir contra a gravidade.
- E você, como se sente? – perguntou João a Antônio.
- Oh, agora estou plenamente satisfeito.
- Então por que busca a morte?
- Bom- respondeu Antônio- me assustou descobrir um fiasco primordial: que a razão tem demônios que a própria razão desconhece. Daí, preferi mergulhar de vez no mistério.
- Sim, da razão conheço demasiado horrores. Mas que mistério é esse tão importante a ponto de merecer sua vida?
- Não sei- respondeu Antônio.- Mistério é mistério.
- Mas morto você não desvendará o mistério!- protestou João.
- Por isso mesmo. O fundamental no mistério é aguçar contradições, e não desvendar. Matar-me, por exemplo, é bom na medida que me torna parte do enigma e, de certo modo, o agudiza. Tem a ver com a fé, que gera energias para a vida. Ou para a história, quem sabe...
- Taí um negócio que perdi: a fé. Deus para mim...- e João engasgou.
- Ora – revidou Antônio vivamente.- A fé nada tem a ver com Deus, que se reduziu a uma pobre estrela anã de energias tão concentradas que já nem sai do lugar. Deus desistiu de entender os homens, e virou também indagador. Sem Deus nem Razão, a única fé possível é mergulhar neste abismo do mistério total.
- Mas para isso é preciso ao menos saber onde está o mistério- insistiu João com os cabelos drapejando ao vento.
- Ué, o mistério está em mim, por exemplo, que me mato para coincidir comigo mesmo. Mas há mistério também em você: seu morrer de amor é o mais impossível ato de fé. Graças a ele, você participa do mistério. Porque se apaixonou pelos abismos.
João olhou com olhos estatelados, ao compreender. E Antônio, que já faiscava na semi-realidade da vertigem, gritou com todas as forças:
- Há sobretudo este mistério maior de estarmos, na mesma hora e local, cometendo o mesmo gesto absurdo e despencando para a mesma incerteza, por puro acaso. Além de cúmplices, a intensidade deste mergulho nos tornou visionários. Você não vê diante de si o desconhecido? É que já estamos perfurando a treva.
E como tudo de fato reluzia, João também ergueu a voz:
- Sim, sim. É espantoso o brilho do absurdo.
- E agora- disse Antônio bem diante do rosto de João- falemos um pouco da permanência. Você gosta dos meus olhos azuis?
Foi quando os dois corpos se estatelaram na Avenida São Luís.
abril/1982
(João Silvério Trevisan, "Dois Corpos que caem", do livro de contos "Troços e Destroços")
Réquiem por um fugitivo
Não que eu tivesse medo. Mas ele era excessivamente pálido. Mesmo sem nunca ter encarado o seu rosto eu já sabia de sua palidez, como sabia de sua frieza sem precisar tocá-lo. Estava ali desde muito tempo, desde antes de mim. Eu o via desde muito pequeno, quando minha mãe abria o guarda-roupa e eu conseguia perceber no meio dos vestidos as suas mãos demasiado longas. No começo não tinha voz para perguntar quem era, o que fazia. E quando finalmente tive voz e tive movimentos, já não era necessária nenhuma pergunta, nenhuma curiosidade. Sabia-o ali, no meio dos vestidos e dos chapéus. Sabia-o ali, pálido e frio, praticamente ausente. Às vezes me comoviam a sua solidão e sua lealdade: nunca vira minha mãe agredi-lo mas, por outro lado, também nunca a vi tomar conhecimento dele. Nem por isso ele solicitava qualquer atenção. Estava apenas ali, tangível e remoto como a parede do fundo do guarda-roupa.
Quando cresci um pouco ganhei um quarto só para mim, o que impôs uma distância maior entre nós. Mesmo assim eu não esquecia dele. Em parte porque seria impossível esquecê-lo, em parte também, principalmente, porque não desejava isso. É verdade, eu o amava. Não com esse amor de carne, de querer tocá-lo e possuí-lo e saber coisas de dentro dele. Era um amor diferente, quase assim feito uma segurança de sabê-lo sempre ali, quando minha mãe saía e eu ficava sozinho ou quando havia tempestade. Mais ou menos como essa coisa que as pessoas são capazes de sentir por um móvel ou um objeto muito antigos. A única diferença era que eu não admitia que ninguém mais pensasse assim. Para ser mais claro: eu tinha ciúme. Nada sei a respeito de sua vida privada, mas às vezes chegava a desconfiar dele com minha mãe. Hoje é a primeira vez que tenho coragem de admitir isso, porque uma coisa terrível aconteceu.
Muitas noites eu ficava tenso na minha cama, procurando ouvir ruídos- certos ruídos- no quarto de minha mãe. Para ser justo, devo dizer que nunca ouvi nada. Claro que de vez em quando alguma madeira estalava no teto, algum rato ensaiava uma corrida furtiva, ou acontecia qualquer outro desses rumores noturnos. São coisas corriqueiras essas, que acontecem, suponho, em qualquer casa- e digo suponho porque nunca vivi em outra casa que não a minha. Mesmo sabendo disso, eu me contraía cheio de suspeita e mágoa. Imaginava-os na cama, fazendo amor, e isso me doía mais, muito mais do que qualquer outra coisa, a não ser o que aconteceu hoje de manhã.
Minha mãe foi muito correta. É verdade que sempre foi viúva, desde que me conheço por gente, mas é verdade também que nunca me tornou cúmplice de sua viuvez. Devia ter seus problemas, claro, mas nunca me tornou participante deles. Ela os resolvia em silêncio, discreta, sabendo que eu sabia, mas sem me impor absolutamente nada. Inclusiva a presença dele, ela não me impôs. Não que o tenha ocultado (e essa atitude me faz ter quase certeza que realmente nada havia entre eles) : abria sem dissímulo a porta do guarda-roupa e eu espiava para dentro sem que ela impedisse ou estimulasse. Também nunca me falou dele. Nem dele nem de outro qualquer, de dentro ou de fora do guarda-roupa. Não que não tivesse confiança em mim, na verdade nunca demonstrou isso- nem o contrário. Embora não nos falássemos, ela sempre foi muito educada, muito gentil. Não lembro de tê-la ouvido falar alguma vez em voz baixa ou em voz terna, ou mesmo em qualquer outra voz, mas isso não importa: o essencial é que ela nunca gritou. E se é verdade que não chegamos a ter amor um pelo outro, é verdade também que não chegamos a ter ódio. Acredito mesmo que tivéssemos descoberto a forma ideal de convivência e comunicação.
A vida era muito dura. Não chegávamos a passar fome ou frio ou nenhuma dessas coisas. Mas era dura porque era sem cor, sem ritmo e também sem forma. Os dias passavam, passavam e passavam, alcançavam as semanas, dobravam as quinzenas, atingiam os meses, acumulavam-se em anos, amontoavam-se em décadas- e nada acontecia. Eu tinha a impressão de viver dentro de uma enorme e vazia bola de gás, em constante rotação. A vida só se tornava mais lenta quando, aproveitando a ausência de minha mãe, eu abria devagarinho a porta do guarda-roupa para vê-lo. Não ousava encará-lo: acreditava que seria necessária uma longa aprendizagem antes de submetê-lo à visão da minha face. Não que ela fosse excessivamente feia ou disforme, não se trata disso. Mas é que não havia no meu rosto nada de peculiar ou de interessante, nada que fosse digno de seu olhar. Ele tinha um olhar feito somente para coisas dignas, esclareço.
Assim, eu me satisfazia em observar seus pés, suas pernas, até um pouco acima dos joelhos onde repousavam, suspensas, aquelas mãos. E isso era espantoso: os pés, as pernas, os joelhos, as mãos. Era tão maravilhosamente espantoso que eu não suportaria olhar mais adiante, seria demasiado para meus pobres olhos que, ao contrário dos dele, foram feitos para o trivial. Seus pés era muito magros e estavam descalços. Tinham magníficas falanges de ossos perfeitos e um detalhe que os diferenciava de quaisquer outros pés – o segundo dedo era maior que o primeiro, e de uma perfeição indescritível, com sua ponta levemente quadrada e sua unha um pouco azul. como se ele fosse anêmico ou sentisse muito frio. Foi pensando nessa segunda hipótese que, um dia, de cabeça baixa, troquei alguns vestidos de lugar, deixando mais próximo dele o casaco de peles de minha mãe. Acho que não adiantou nada, pois no dia seguinte a unha do segundo dedo continuava azulada, com uma pequena diferença: a meia-lua estava um pouco mais estreita. As suas pernas eu não podia ver, havia aquela roupa branca muito comprida, que escondia inclusive os tornozelos. Ainda assim, podia intuir por baixo do tecido leve a delicadeza de sua ossatura, que se confirmava nas mãos, dignas de qualquer poema, de qualquer tela, de qualquer sinfonia. Sei que fico um tanto ridículo falando delas nesse tom, mas não consigo evitá-lo: quando se quer explicar o inexplicável sempre se fica um pouco piegas. Por isso me eximo de descrevê-las. Digo apenas que estavam ali, paradas, e aqueles pés esplêndidos em muito ficavam lhes devendo. Eram essas mãos que povoavam meus sonhos. Meus sonhos eram repletos dessas mãos, que ora me indicavam caminhos, ora me acariciavam os cabelos, ora dançavam tomadas de vida própria. Acordava assustado com minha própria audácia, chegando a desejar que num dos sonhos elas ensaiassem um gesto mais ríspido para que eu pudesse detestá-las ou temê-las. Mas eram sempre doces, e isso nunca aconteceu.
Foi quando minha mãe morreu, ontem à noite. Eu estava deitado no meu quarto quando a ouvi morrendo. Era um som inconfundível: nenhuma das suas caixinhas de música, nenhum dos ruídos noturnos, nenhum de seus amantes conseguira jamais produzir aquele som. Era escuro e rouco como as coisas que não têm depois. Fiquei a escutar por um instante, sem me abalar, pois sabia que ela morreria um dia, como todas as pessoas, e não me atemorizava nem me surpreendia que esse dia fosse ontem, hoje ou amanhã. Depois de escutar durante uns cinco minutos abandonei as flores de cartolina que costumava fazer e fui até seu quarto. Quando cheguei, o som já havia diminuído de intensidade e, quando a toquei, desaparecera por completo. Deduzi que estava morta. Telefonei para o médico, que veio e confirmou minha suspeita, e depois para a funerária, que a encaixotou e levou. Passei a noite mais insone do que de costume. Restávamos, agora, eu e ele. E eu não sabia como tratá-lo, como comunicar a ele o acontecimento. Imaginava que as pessoas como ele fossem difíceis, sensíveis, e ele era tão mais pálido que as gentes que eu costumava ver pela janela que estava realmente confuso.
Hoje de manhã armei-me de toda coragem e abri a porta do guarda-roupa. Ele estava lá, no mesmo lugar. Foi só então que tive a minha suspeita- pois até esse momento não passara de uma suspeita- confirmada. As dúvidas se diluíram e eu tive certeza: tratava-se realmente de um anjo. Não sei se arcanjo ou serafim, mas indubitavelmente, irreversivelmente, inconfundivelmente- um anjo. Olhei-o, então. Acreditei que o momento houvesse chegado, e olhei-o. Confesso que esperava um sorriso ou qualquer outra manifestação dessas de afeto. Mas não houve nada disso. Não pude sequer perceber se era moreno ou louro, castanho ou ruivo. O que aconteceu foi apenas um clarão enorme e um ruído quase ensurdecedor de asas... como se diz mesmo? ...ruflando, é isso: um ruído quase ensurdecedor de asas ruflando. Em seguida saiu pela janela aberta, alcançou os galhos mais altos dos plátanos desfolhados e desapareceu. Julguei ainda ouvir a voz dele dizendo que voltaria, mas não explicou quando. Não sei também se disse isso apenas por gentileza, para me consolar, ou se realmente pretende voltar um dia.
O que nunca pensei é que pudesse ser assim tão vazia uma casa sem um anjo. Dentro de mim existe alguma coisa que espera a sua volta, de repente, não sei se pela janela ou se aparecerá novamente no mesmo lugar. Para prevenir surpresas, tenho deixado sempre abertas todas as janelas e todas as portas de todos os guarda-roupas. Enquanto não chega, preparo duas coroas de flores: uma para o túmulo de minha mãe, outra para o guarda-roupa que ele habitava.
(Texto “Réquiem por um fugitivo” de Caio Fernando Abreu, constante no livro “O ovo apunhalado”, p.p.20/25)
Quando cresci um pouco ganhei um quarto só para mim, o que impôs uma distância maior entre nós. Mesmo assim eu não esquecia dele. Em parte porque seria impossível esquecê-lo, em parte também, principalmente, porque não desejava isso. É verdade, eu o amava. Não com esse amor de carne, de querer tocá-lo e possuí-lo e saber coisas de dentro dele. Era um amor diferente, quase assim feito uma segurança de sabê-lo sempre ali, quando minha mãe saía e eu ficava sozinho ou quando havia tempestade. Mais ou menos como essa coisa que as pessoas são capazes de sentir por um móvel ou um objeto muito antigos. A única diferença era que eu não admitia que ninguém mais pensasse assim. Para ser mais claro: eu tinha ciúme. Nada sei a respeito de sua vida privada, mas às vezes chegava a desconfiar dele com minha mãe. Hoje é a primeira vez que tenho coragem de admitir isso, porque uma coisa terrível aconteceu.
Muitas noites eu ficava tenso na minha cama, procurando ouvir ruídos- certos ruídos- no quarto de minha mãe. Para ser justo, devo dizer que nunca ouvi nada. Claro que de vez em quando alguma madeira estalava no teto, algum rato ensaiava uma corrida furtiva, ou acontecia qualquer outro desses rumores noturnos. São coisas corriqueiras essas, que acontecem, suponho, em qualquer casa- e digo suponho porque nunca vivi em outra casa que não a minha. Mesmo sabendo disso, eu me contraía cheio de suspeita e mágoa. Imaginava-os na cama, fazendo amor, e isso me doía mais, muito mais do que qualquer outra coisa, a não ser o que aconteceu hoje de manhã.
Minha mãe foi muito correta. É verdade que sempre foi viúva, desde que me conheço por gente, mas é verdade também que nunca me tornou cúmplice de sua viuvez. Devia ter seus problemas, claro, mas nunca me tornou participante deles. Ela os resolvia em silêncio, discreta, sabendo que eu sabia, mas sem me impor absolutamente nada. Inclusiva a presença dele, ela não me impôs. Não que o tenha ocultado (e essa atitude me faz ter quase certeza que realmente nada havia entre eles) : abria sem dissímulo a porta do guarda-roupa e eu espiava para dentro sem que ela impedisse ou estimulasse. Também nunca me falou dele. Nem dele nem de outro qualquer, de dentro ou de fora do guarda-roupa. Não que não tivesse confiança em mim, na verdade nunca demonstrou isso- nem o contrário. Embora não nos falássemos, ela sempre foi muito educada, muito gentil. Não lembro de tê-la ouvido falar alguma vez em voz baixa ou em voz terna, ou mesmo em qualquer outra voz, mas isso não importa: o essencial é que ela nunca gritou. E se é verdade que não chegamos a ter amor um pelo outro, é verdade também que não chegamos a ter ódio. Acredito mesmo que tivéssemos descoberto a forma ideal de convivência e comunicação.
A vida era muito dura. Não chegávamos a passar fome ou frio ou nenhuma dessas coisas. Mas era dura porque era sem cor, sem ritmo e também sem forma. Os dias passavam, passavam e passavam, alcançavam as semanas, dobravam as quinzenas, atingiam os meses, acumulavam-se em anos, amontoavam-se em décadas- e nada acontecia. Eu tinha a impressão de viver dentro de uma enorme e vazia bola de gás, em constante rotação. A vida só se tornava mais lenta quando, aproveitando a ausência de minha mãe, eu abria devagarinho a porta do guarda-roupa para vê-lo. Não ousava encará-lo: acreditava que seria necessária uma longa aprendizagem antes de submetê-lo à visão da minha face. Não que ela fosse excessivamente feia ou disforme, não se trata disso. Mas é que não havia no meu rosto nada de peculiar ou de interessante, nada que fosse digno de seu olhar. Ele tinha um olhar feito somente para coisas dignas, esclareço.
Assim, eu me satisfazia em observar seus pés, suas pernas, até um pouco acima dos joelhos onde repousavam, suspensas, aquelas mãos. E isso era espantoso: os pés, as pernas, os joelhos, as mãos. Era tão maravilhosamente espantoso que eu não suportaria olhar mais adiante, seria demasiado para meus pobres olhos que, ao contrário dos dele, foram feitos para o trivial. Seus pés era muito magros e estavam descalços. Tinham magníficas falanges de ossos perfeitos e um detalhe que os diferenciava de quaisquer outros pés – o segundo dedo era maior que o primeiro, e de uma perfeição indescritível, com sua ponta levemente quadrada e sua unha um pouco azul. como se ele fosse anêmico ou sentisse muito frio. Foi pensando nessa segunda hipótese que, um dia, de cabeça baixa, troquei alguns vestidos de lugar, deixando mais próximo dele o casaco de peles de minha mãe. Acho que não adiantou nada, pois no dia seguinte a unha do segundo dedo continuava azulada, com uma pequena diferença: a meia-lua estava um pouco mais estreita. As suas pernas eu não podia ver, havia aquela roupa branca muito comprida, que escondia inclusive os tornozelos. Ainda assim, podia intuir por baixo do tecido leve a delicadeza de sua ossatura, que se confirmava nas mãos, dignas de qualquer poema, de qualquer tela, de qualquer sinfonia. Sei que fico um tanto ridículo falando delas nesse tom, mas não consigo evitá-lo: quando se quer explicar o inexplicável sempre se fica um pouco piegas. Por isso me eximo de descrevê-las. Digo apenas que estavam ali, paradas, e aqueles pés esplêndidos em muito ficavam lhes devendo. Eram essas mãos que povoavam meus sonhos. Meus sonhos eram repletos dessas mãos, que ora me indicavam caminhos, ora me acariciavam os cabelos, ora dançavam tomadas de vida própria. Acordava assustado com minha própria audácia, chegando a desejar que num dos sonhos elas ensaiassem um gesto mais ríspido para que eu pudesse detestá-las ou temê-las. Mas eram sempre doces, e isso nunca aconteceu.
Foi quando minha mãe morreu, ontem à noite. Eu estava deitado no meu quarto quando a ouvi morrendo. Era um som inconfundível: nenhuma das suas caixinhas de música, nenhum dos ruídos noturnos, nenhum de seus amantes conseguira jamais produzir aquele som. Era escuro e rouco como as coisas que não têm depois. Fiquei a escutar por um instante, sem me abalar, pois sabia que ela morreria um dia, como todas as pessoas, e não me atemorizava nem me surpreendia que esse dia fosse ontem, hoje ou amanhã. Depois de escutar durante uns cinco minutos abandonei as flores de cartolina que costumava fazer e fui até seu quarto. Quando cheguei, o som já havia diminuído de intensidade e, quando a toquei, desaparecera por completo. Deduzi que estava morta. Telefonei para o médico, que veio e confirmou minha suspeita, e depois para a funerária, que a encaixotou e levou. Passei a noite mais insone do que de costume. Restávamos, agora, eu e ele. E eu não sabia como tratá-lo, como comunicar a ele o acontecimento. Imaginava que as pessoas como ele fossem difíceis, sensíveis, e ele era tão mais pálido que as gentes que eu costumava ver pela janela que estava realmente confuso.
Hoje de manhã armei-me de toda coragem e abri a porta do guarda-roupa. Ele estava lá, no mesmo lugar. Foi só então que tive a minha suspeita- pois até esse momento não passara de uma suspeita- confirmada. As dúvidas se diluíram e eu tive certeza: tratava-se realmente de um anjo. Não sei se arcanjo ou serafim, mas indubitavelmente, irreversivelmente, inconfundivelmente- um anjo. Olhei-o, então. Acreditei que o momento houvesse chegado, e olhei-o. Confesso que esperava um sorriso ou qualquer outra manifestação dessas de afeto. Mas não houve nada disso. Não pude sequer perceber se era moreno ou louro, castanho ou ruivo. O que aconteceu foi apenas um clarão enorme e um ruído quase ensurdecedor de asas... como se diz mesmo? ...ruflando, é isso: um ruído quase ensurdecedor de asas ruflando. Em seguida saiu pela janela aberta, alcançou os galhos mais altos dos plátanos desfolhados e desapareceu. Julguei ainda ouvir a voz dele dizendo que voltaria, mas não explicou quando. Não sei também se disse isso apenas por gentileza, para me consolar, ou se realmente pretende voltar um dia.
O que nunca pensei é que pudesse ser assim tão vazia uma casa sem um anjo. Dentro de mim existe alguma coisa que espera a sua volta, de repente, não sei se pela janela ou se aparecerá novamente no mesmo lugar. Para prevenir surpresas, tenho deixado sempre abertas todas as janelas e todas as portas de todos os guarda-roupas. Enquanto não chega, preparo duas coroas de flores: uma para o túmulo de minha mãe, outra para o guarda-roupa que ele habitava.
(Texto “Réquiem por um fugitivo” de Caio Fernando Abreu, constante no livro “O ovo apunhalado”, p.p.20/25)
Tô voltando
Retomando o projeto do blog, após mais de 30 meses, tentando encarar o desafio da atualização (mais que) diária....
"Pode ir armando o coreto
e preparando aquele feijão preto
Eu tô voltando
Põe meia dúzia de brahma prá gelar,
muda a roupa de cama
Eu tô voltando
Leva o chinelo prá sala de jantar
Que é lá mesmo que a mala eu vou largar
Quero te abraçar,
pode se perfumar porque eu tô voltando
Dá uma geral, faz um bom defumador, enche a casa de flor
Que eu tô voltando
Pega uma praia, aproveita, tá calor, vai pegando uma cor
Que eu tô voltando
Faz um cabelo bonito prá eu notar
que eu só quero mesmo é despentear
Quero te agarrar, pode se preparar
porque eu tô voltando
Põe prá tocar na vitrola aquele som,estréia uma camisola
Eu tô voltando
Dá folga prá empregada,
manda a criançada pra casa da avó
Que eu to voltando
Diz que eu só volto amanhã se alguém chamar
Telefone não deixa nem tocar...
lá.. lá.. lá.. ia.....porque eu to voltando!"
(Maurício Tapajós/Paulo César Pinheiro- Tô Voltando)
"Pode ir armando o coreto
e preparando aquele feijão preto
Eu tô voltando
Põe meia dúzia de brahma prá gelar,
muda a roupa de cama
Eu tô voltando
Leva o chinelo prá sala de jantar
Que é lá mesmo que a mala eu vou largar
Quero te abraçar,
pode se perfumar porque eu tô voltando
Dá uma geral, faz um bom defumador, enche a casa de flor
Que eu tô voltando
Pega uma praia, aproveita, tá calor, vai pegando uma cor
Que eu tô voltando
Faz um cabelo bonito prá eu notar
que eu só quero mesmo é despentear
Quero te agarrar, pode se preparar
porque eu tô voltando
Põe prá tocar na vitrola aquele som,estréia uma camisola
Eu tô voltando
Dá folga prá empregada,
manda a criançada pra casa da avó
Que eu to voltando
Diz que eu só volto amanhã se alguém chamar
Telefone não deixa nem tocar...
lá.. lá.. lá.. ia.....porque eu to voltando!"
(Maurício Tapajós/Paulo César Pinheiro- Tô Voltando)
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