Wednesday, February 04, 2009

Aquele olhar

Para G. A.

“Uma noite longa, pra uma vida curta”
(Herbert Viana- Lanterna dos Afogados)

A chuva caía insistentemente. Abrigados sob o toldo da farmácia, eles sequer se mexiam. Aguardavam talvez que o destino lhes reservasse qualquer espécie de surpresa.

O primeiro olhava insistentemente para o relógio prateado. Contava minutos e segundos como se houvesse hora certa para o temporal cessar. Esforçava-se para ser natural. Tentou ainda cantarolar baixinho uma velha canção, mas não obteve sucesso.

O outro estava ansioso. Sabia o que significava estar ali, naquelas circunstâncias. Mas não poderia esboçar qualquer reação. Um ato precipitado poderia por tudo a perder.

O que portava o relógio era alto, moreno, cabelos negros lisos, roupa formal. O outro usava jeans e camiseta vermelha. Também era alto, usava aparelho nos dentes e possuía o cabelo levemente crespo e a tez bem branca.

O dia raiava lentamente. As nuvens carregadas atrasavam a alvorada. Mesmo assim, os primeiros raios começavam a surgir.

Trocaram o primeiro olhar. E o segundo, e o terceiro. Em alguns instantes, miravam-se fixamente. Então o moreno desistiu e mudou de direção. E o seu interlocutor decepcionou-se.

Ambos imaginavam situações semelhantes. Era a chuva que não passava, a preocupação dos pais com tamanha demora, o frio que já lhes corroía os ossos e principalmente, aquele olhar que não era passível de ser encarado.

Ambos desejavam uma palavra, gesto ou qualquer outro contato inicial. Mas em sua vidas, sempre fora difícil iniciar. E então, conformados, só lhes restava observar o cair da chuva.

Foi então que o inesperado veio a socorrer-lhes. Um raio atravessara a árvore ao fim da rua. Um grande clarão iluminou o horizonte próximo, sendo sucedido por uma profusão de trovões. O fim de tudo parecia se aproximar.

Assustados, comentaram timidamente algumas bobagens. Entre a apreensão e o sobressalto, sentiam-se um tanto quanto maravilhados. E finalmente, começaram a dialogar.

Conheciam-se de vista, mas preferiram não fazer menção a este fato. Apresentaram-se como se fosse este o primeiro contato, embora há muito já se interessassem um pelo outro. E a conversa se desenrolou naturalmente.

Eram vizinhos de prédio. Também freqüentavam a mesma universidade. O que usava aparelho cursava farmácia; o outro história.

Cada palavra era um passo firme em direção a uma intimidade que se aproximava cada vez mais rápido. Logo não conseguiam mais disfarçar a atração que sentiam um pelo outro. E os olhares voltavam a se fixar, numa intensidade nunca antes vista.

Então, talvez por mero acaso, as mãos se tocaram. Em seguida os lábios se encontraram e os braços se entrelaçaram. Logo estavam se amando na calçada, sob o toldo da drogaria.

A chuva cessou algumas horas depois. A prefeitura mandou homens de macacão azul para remover o que restara da arvore atingida. E exceto por uma velha senhora que caminhava todas as manhãs pela região, ninguém mais estranhou aqueles dois corpos nus que amanheceram abraçados sobre a calçada da Rua da Graça.

J.M, Salvador, 18 de abril de 2003

1 comment:

Carol said...

eu me lembro de um dia em que estive ilhada contigo debaixo de um toldo de farmácia na Rua da Graça, e tb usava aparelho!!! Mas as semelhanças chegam só até este ponto, rsrsrs. Pelo visto sou uma frutífera fonte de inspiração para os seus contos. Adoro isso!!!! E amo você e sua sensibilidade!!!!